A Jornada da Personalidade: Entre a Renúncia do Eu e a Lei de Thelema
A busca pelo autoconhecimento e desenvolvimento da personalidade tem sido uma constante na história humana. Diversas filosofias e sistemas de pensamento têm explorado os caminhos que levam à realização do verdadeiro eu. Entre eles, a Lei de Thelema, proclamada por Aleister Crowley, estabelece como preceito fundamental: "Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Amor é a lei, amor sob vontade."
Este ensaio explora a jornada interior de desenvolvimento da personalidade, tomando como base a Lei de Thelema e integrando reflexões pessoais, referências bíblicas, conceitos de Friedrich Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, e princípios da psicanálise freudiana. Buscamos compreender como a renúncia do eu, a transformação pessoal e a realização da Verdadeira Vontade são etapas essenciais nessa trajetória.
A Renúncia do Eu e a Busca pelo Centro
A narrativa bíblica apresenta um chamado à renúncia do eu como caminho para a realização espiritual. Em Mateus 16:24-25, Jesus diz:
"Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me; Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á."
Esse convite à renúncia não implica em abnegação total, mas em um ato de concentração e desapego do ego. É uma preparação para assumir o eixo do presente, o ponto central da cruz, onde o indivíduo equilibra as forças internas e externas que o influenciam. Essa centralização reflete o conceito de “axis mundi”, o eixo do mundo, representando o ponto de conexão entre o humano e o divino, entre o material e o espiritual.
Na busca por esse equilíbrio, emergem as pulsões descritas por Sigmund Freud, forças internas que dirigem o comportamento humano. Freud identificou duas pulsões básicas: Eros (pulsão de vida) e Tânatos (pulsão de morte). O desenvolvimento da personalidade requer o reconhecimento e a harmonização dessas pulsões, evitando que uma se sobreponha à outra de forma destrutiva.
29. Pois Eu estou dividida por amor ao amor, pela chance de união.
30. Esta é a criação do mundo, que a dor de divisão é como nada, e a alegria da dissolução tudo.
Liber AL vel Legis I:29-30
A Criança e a Redescoberta da Criatividade
Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, descreve três metamorfoses do espírito: o camelo, o leão e a criança. O camelo representa a carga dos valores tradicionais e a submissão às normas estabelecidas. O leão simboliza a negação desses valores, a rebeldia e a destruição das antigas tábuas. Porém, é na figura da criança que reside a capacidade de criar novos valores.
A criança é livre, criativa e destituída dos condicionamentos que limitam o adulto. Ela representa a mente aberta, que vive no presente e atribui significado pessoal ao mundo ao seu redor. Essa liberdade é exemplificada na imagem de uma criança que usa um sapato como martelo, sem se preocupar com as definições estabelecidas. Para ela, é "a porra de um martelo, e foda-se"; a sua vontade e imaginação definem a realidade.
Essa atitude reflete o preceito thelêmico de "Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei". É a manifestação da Verdadeira Vontade, não limitada por convenções sociais ou expectativas alheias. A criança não busca aprovação externa; ela age de acordo com sua essência interior.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso.
Para ele isto é uma verdadeira rapina e coisa própria de um animal rapace.
Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo,
a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito. Dizei-me, porém, irmãos:
que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é preciso uma santa afirmação:
o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo.
Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transmutava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”.Assim falou Zaratustra
A Lei de Thelema e o Desenvolvimento da Personalidade
A Lei de Thelema coloca a descoberta e a realização da Verdadeira Vontade como o objetivo supremo do indivíduo. Aleister Crowley enfatiza que essa vontade não é um desejo passageiro ou caprichoso, mas o propósito mais profundo do ser.
"Amor é a lei, amor sob vontade." O amor, nesse contexto, é a força unificadora que guia a vontade. Não é um amor cego ou possessivo, mas um amor consciente e dirigido, alinhado com a Verdadeira Vontade. Essa união entre amor e vontade é crucial para o desenvolvimento harmonioso da personalidade.
A realização da Verdadeira Vontade implica em uma renúncia do ego superficial, das máscaras sociais e das expectativas externas. É um retorno ao centro, ao ponto de equilíbrio, onde o indivíduo alinha suas pulsões internas com seu propósito maior.
22. Eu sou a Cobra que dá Conhecimento & Deleite e brilhante glória, e movo os corações dos homens com embriaguez.
Para adorar-me tomai vinho e estranhas drogas das quais Eu direi ao meu profeta, & embriagai-vos deles!
Eles não vos farão mal de forma alguma. É uma mentira, esta tolice contra si mesmo. A exibição de inocência é uma mentira.
Sê forte, ó homem! Arde, usufrui todas as coisas de senso e raptura: não temas que qualquer Deus te negará por isto.23. Eu sou só: não existe Deus onde Eu sou.
Liber AL vel Legis II:22-23
A Psicanálise e a Estrutura da Personalidade
Sigmund Freud propôs uma estrutura da personalidade composta por três instâncias: id, ego e superego. O id representa as pulsões instintivas e inconscientes; o ego é a parte consciente que lida com a realidade; o superego é a internalização das normas sociais e morais.
O desenvolvimento da personalidade, segundo Freud, envolve o conflito e a interação entre essas instâncias. A realização da Verdadeira Vontade requer que o ego estabeleça um equilíbrio entre os desejos do id e as exigências do superego.
A atitude de renúncia do ego superficial alinha-se com a necessidade de transcender as limitações impostas pelo superego. Não se trata de ignorar a moralidade, mas de redefini-la de acordo com a vontade genuína do indivíduo, livre de repressões e condicionamentos.
Respondamos primeiro ao que é mais fácil de responder. A diferenciação entre ego e id deve ser atribuída não apenas ao homem primitivo, mas até mesmo a organismos muito mais simples, pois ela é expressão inevitável da influência do mundo externo. O superego, segundo a nossa hipótese, originou-se, em realidade, das experiências que levaram ao totemismo. A questão de saber se foi o ego ou o id que experimentou e adquiriu aquelas coisas resulta logo em nada. A reflexão em seguida nos demonstra que nenhuma vicissitude externa pode ser experimentada ou sofrida pelo id, exceto por via do ego, que é o representante do mundo externo para o id. Entretanto, não é possível falar de herança direta no ego. É aqui que o abismo entre um indivíduo concreto e o conceito de uma espécie se torna evidente. Além disso, não se deve tomar a diferença entre ego e id num sentido demasiado rígido, nem esquecer que o ego é uma parte especialmente diferenciada do id. As experiências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante freqüência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as.
A maneira pela qual o superego surge explica como é que os primitivos conflitos do ego com as catexias objetais do id podem ser continuados em conflitos com o seu herdeiro, o superego.
Sigmund Freud
O Caminho da Individuação e a Integração dos Opostos
Carl Jung, através do conceito de individuação, amplia a compreensão do desenvolvimento da personalidade. A individuação é o processo pelo qual o indivíduo integra os aspectos conscientes e inconscientes de si mesmo, tornando-se um ser completo e único.
Jung enfatiza a importância de reconhecer e integrar a sombra, os aspectos reprimidos ou desconhecidos da psique. Somente através dessa integração é possível alcançar a totalidade do ser.
No contexto thelêmico, essa integração é essencial para a realização da Verdadeira Vontade. Ao confrontar e integrar os aspectos sombrios, o indivíduo liberta-se das restrições internas que impedem a manifestação plena de seu potencial.
Com compreensão e boa vontade, a sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade, enquanto certos traços, como o sabemos pela experiência, opõem obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto a qualquer influência. De modo geral, estas resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços característicos da sombra podem ser reconhecidos, sem maior dificuldade, como qualidades pertinentes à personalidade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa. Talvez o observador objetivo perceba claramente que se trata de projeções. Mas há pouca esperança de que o sujeito delas tome consciência. Deve admitir-se, porém, que às vezes é possível haver engano ao pretender-se separar projeções de caráter nitidamente emocional, do objeto.
Carl Jung
A Porta Estreita e a Escolha do Caminho
As passagens bíblicas de Mateus 7:13-14 e Lucas 13:24 falam sobre a porta estreita que leva à vida, em contraste com o caminho amplo que leva à perdição. Metaforicamente, essas passagens refletem a dificuldade de seguir o caminho da realização pessoal e espiritual.
O desenvolvimento da personalidade exige escolhas conscientes e a disposição de enfrentar desafios internos. É mais fácil conformar-se às expectativas sociais (a porta larga) do que buscar a verdade interior (a porta estreita).
O indivíduo, ao optar pela porta estreita, está assumindo a responsabilidade por sua própria jornada, alinhando-se com a Lei de Thelema e buscando a manifestação de sua Verdadeira Vontade.
7:13
Entrai pela porta estreita, porque largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele.
7:14
Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram.
13:24Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não conseguirão.
A Jornada Interior e a Realização da Verdadeira Vontade
A jornada de desenvolvimento da personalidade é complexa e exige coragem, autoconhecimento e determinação. A Lei de Thelema oferece um guia para essa jornada, enfatizando a importância de descobrir e realizar a Verdadeira Vontade, guiada pelo amor consciente.
A integração dos conceitos freudianos e junguianos permite uma compreensão mais profunda dos processos internos que influenciam essa jornada. A renúncia do ego superficial, a integração da sombra e o equilíbrio das pulsões são etapas fundamentais nesse processo.
Em última análise, o desenvolvimento da personalidade é uma jornada individual, onde cada um deve encontrar seu próprio caminho, destruir as antigas tábuas de valores que já não servem, e, como a criança descrita por Nietzsche, criar novos valores que reflitam sua essência mais profunda.
15. Vós ficareis tristes por isto.
16. Não penseis demasiado avidamente em apossar-vos das promessas; não temais incorrer nas maldições. Vós, mesmo vós, não conheceis este significado todo.
17. De todo não temais; não temais nem homens nem Fados, nem deuses, nem coisa alguma. Dinheiro não temais, nem risada da tolice do povo, nem qualquer outro poder no céu ou sobre a terra ou debaixo da terra. Nu é vosso refúgio como Hadit vossa luz; e Eu sou a potência, força, vigor, de vossas armas.
18. Misericórdia esteja fora: amaldiçoai os que se apiedam! Matai e torturai; não poupeis; sede sobre eles!
Liber AL vel Legis III-15-18
"Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei. Amor é a lei, amor sob vontade."
Referências
1. Crowley, Aleister. O Livro da Lei.
2. Freud, Sigmund. O Ego e o Id.
3. Jung, Carl Gustav. Aion: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-Mesmo.
4. Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zaratustra.